domingo, 20 de julho de 2014

Os filhos são pais da morte dos seus pais


 Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai do seu pai.
É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento e impreciso.
É quando aquele pai que segurava com força a nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, outrora firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro do tempo para sair do seu lugar.
É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe.
É quando aquele pai, antes disponível e trabalhador, fracassa ao tirar a sua própria roupa e não se lembra dos medicamentos que tem para tomar.
E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende da nossa vida para morrer em paz.
Todo o filho é pai da morte de seu pai.
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente a nossa última gravidez. O nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.
E assim, como mudamos a casa para receber quem nasce, tapando tomadas e colocando cercas, vamos alterar a rotina dos móveis para criar espaços para os nossos pais.
Uma das primeiras transformações acontece na casa de banho.
Seremos pais de nossos pais na hora de colocar uma barra de apoio no chuveiro.
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.
Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos dos nossos protectores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos os nossos braços nas paredes.
A casa de quem cuida dos pais tem os braços dos filhos pelas paredes. Os nossos braços estarão espalhados sob a forma de corrimões.
Envelhecer é andar de mãos dadas com os objectos, envelhecer é subir escadas mesmo sem degraus.
Seremos estranhos na nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitectos, decoradores e engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais um dia adoecessem e precisassem de nós?
Feliz do filho que é pai do seu pai antes da morte e triste do filho que aparece somente no funeral (quando acontece…) e não se despede dele um pouco em cada dia.
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, repondo os lençóis, quando o Zé gritou:
— Deixe que eu ajudo…
Reuniu todas as suas forças e pegou pela primeira vez o seu pai ao colo.
Colocou o rosto do seu pai contra o seu peito.
Ajeitou nos seus ombros o pai consumido pelo cancro: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.
Ficou nos seus braços um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um tempo interminável.
Embalou o pai de um lado para o outro.
Aninhou o pai.
Acalmou o pai.
E apenas dizia, sussurrando:
— Eu estou aqui, estou aqui, pai!
O que um pai quer ouvir no fim da sua vida é que o seu filho está ali.




Joaquim Maneta Alhinho

domingo, 13 de julho de 2014

A dor do abandono em vídeo


A dor do abandono...

Era uma manhã de sol quente e céu azul, quando o caixão contendo um corpo sem vida foi baixado à sepultura. De quem se trata? Quase ninguém sabe. Poucas pessoas acompanham o féretro. Ninguém chora. Ninguém sentirá a falta dela. Ninguém para dizer adeus ou até breve.
Depois que o corpo desocupou o quarto do asilo, onde aquela mulher passou boa parte da sua vida, a responsável pela limpeza encontrou numa gaveta ao lado da cama, umas anotações. Um diário sobre a dor... Sobre a dor que ela sentiu por ter sido abandonada pela família num lar para idosos... Talvez o sofrimento fosse muito maior, mas as palavras só permitem extravasar uma parte desse sentimento, gravado nalgumas frases:
Onde andarão os meus filhos? Aquelas crianças sorridentes que embalei no meu colo, alimentei com o meu leite, cuidei com tanto zelo, onde estarão? Estarão tão ocupados que não possam visitar-me, ao menos para dizer olá, mãe? Ah!... Se eles soubessem como é triste sentir a dor do abandono... A mais deprimente solidão... Se ao menos eu pudesse andar...
Mas dependo das mãos generosas destas raparigas que me levam todos os dias para apanhar um pouco de sol no jardim... Jardim que já conheço como a palma da minha mão.
Os anos passam e os meus filhos não entram por aquela porta, de braços abertos, para me envolverem com carinho, com afectos...
Os dias passam... E com eles a esperança vai-se... No começo, a esperança alimentava-me, ou eu a alimentava, não sei... Mas, agora... Como esquecer que fui esquecida? Como engolir esse nó que teima em ficar na minha garganta, dia após dia?
Todas as lágrimas que chorei não foram suficientes para desfaze-lo... Sinto que o crepúsculo desta existência se aproxima... Queria saber dos meus filhos... Dos meus netos... Será que ao menos ainda se lembram de mim? A esperança, agora, parece estar atrelada aos minutos... Que a arrastam sem misericórdia para bem longe de mim...
Às vezes, em sonhos, vejo um lindo jardim, que transcende os muros deste albergue e se abre em caminhos floridos que levam a outra realidade, onde braços afectuosos estão à minha espera com amor e alegria... Mas, quando acordo, é a minha realidade que eu vejo... Que eu vivo... Que eu sinto... Um dia alguém me disse que a vida não se acaba num túmulo escuro e silencioso... Que a vida continua após a morte, de uma outra forma... Mas com certeza a minha matéria, a minha mente, o meu eu, desta vida que vivo agora, com o nome que tenho, nunca mais existirá! E quando a morte chegar, só vai restar a saudade que com o passar do tempo se ameniza... (se é que alguém vai sentir saudades minhas, já que não sentiram enquanto ainda estou viva neste asilo...)
Sinto que a minha hora está a chegar... Depois, quando eu partir, gostaria que alguém encontrasse estas minhas anotações e as divulgasse. E que elas pudessem tocar os corações dos filhos que internam os seus pais em asilos e nunca os visitam... Que eles possam saber um pouco sobre a dor de alguém que sente o que é ser abandonado... Pensem que a cada pai e a cada mãe Deus perguntará: O que fizestes do filho confiado à vossa guarda? E aos filhos: O que fizestes aos vossos pais?



Joaquim Maneta Alhinho